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APAN e o debate acerca das falas de Donald Trump contra o compromisso com a justiça racial no audiovisual



Declarações do presidente norte-americano sobre a cultura "woke" são vistas como um ataque à equidade e à diversidade; associação brasileira reforça importância da representatividade negra no setor cultural

Vivemos um tempo em que o simples ato de existir com dignidade pode ser considerado subversivo. Em que palavras como diversidade, equidade e representatividade causam desconforto a quem se beneficia da desigualdade. É nesse cenário que declarações como as do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump — que chamou a inclusão e a diversidade de "cultura woke" e "veneno" — revelam mais do que uma opinião política: são tentativas incessantes de reverter avanços históricos conquistados com luta, suor e resistência. E essa posição encontra perigosas reverberações aqui no Brasil.
 
A Associação de Profissionais do Audiovisual Negro (APAN) vem a público manifestar repúdio a esse tipo de discurso, que não apenas ataca a cultura, mas também tenta silenciar movimentos sociais que visam construir uma sociedade mais justa e plural. Para a entidade, esse é um momento crucial para reafirmar os compromissos com a justiça racial, especialmente em um setor como o audiovisual, onde as narrativas moldam imaginários e influenciam gerações.
 
“O que Trump chama de ‘veneno’, nós chamamos de resistência. Nós chamamos de justiça. A cultura woke, como os supremacistas brancos gostam de chamar, é, na verdade, um convite para que a sociedade encare seus privilégios e reveja essa estrutura enraizada que busca oprimir aqueles que já são oprimidos. A sociedade precisa acolher as múltiplas vozes que historicamente foram apagadas”, afirma Tatiana Costa, presidente da APAN.
 
Para a organização, que há quase uma década atua no fortalecimento de profissionais negros no audiovisual brasileiro, esse tipo de discurso busca descredibilizar avanços sociais construídos a duras penas por movimentos negros, indígenas, LGBTQIA+ e feministas em todo o mundo. A APAN ressalta que a cultura não pode ser utilizada como palanque para o negacionismo ou como ferramenta de manutenção de privilégios raciais e econômicos.
 
O audiovisual tem sido uma ferramenta crucial no combate a essas narrativas e no fortalecimento de políticas públicas voltadas à inclusão. Segundo a Ancine, entre 2016 e 2022, apenas 0,9% dos cargos de direção nos filmes brasileiros de maior bilheteria foram ocupados por pessoas negras. Quando se trata de mulheres negras, os números são ainda mais preocupantes: nenhum dos 20 filmes de maior público entre 2016 e 2022 teve uma mulher negra na direção. Essa ausência não é coincidência, mas reflexo direto de um sistema excludente.
 
Enquanto isso, produtoras como a Globo Filmes e a O2 Filmes, responsáveis por uma grande parcela das obras financiadas com dinheiro público no Brasil, apresentam números semelhantes: na O2, entre os filmes lançados de 2018 a 2022, 90% foram dirigidos por homens brancos. Já na Globo Filmes, os percentuais se mantêm consistentemente abaixo da paridade racial e de gênero, mesmo com avanços pontuais.
 
Diante desse cenário, a atuação da APAN tem sido fundamental para consolidar políticas afirmativas no setor audiovisual. A implementação de ações como cotas raciais nos editais públicos e laboratórios de formação voltados à população negra tem permitido o surgimento de novas narrativas que dialogam diretamente com os desafios enfrentados por pessoas negras em diáspora – como as populações migrantes.
 
Os dados do mercado de trabalho brasileiro evidenciam uma realidade de desigualdade estrutural: embora os negros sejam maioria na força de trabalho, o rendimento-hora da população branca (R$ 20,10) foi 61,4% maior que o de pretos ou pardos (R$ 11,80), segundo a Síntese de Indicadores Sociais (SIS) 2023 do IBGE. Considerando o rendimento médio real, a distância é ainda mais cruel: brancos receberam R$ 3.273, enquanto pretos ou pardos, R$ 1.994 — uma diferença de 64,2%.
 
A desigualdade se acentua ainda mais com o avanço da escolaridade. No nível superior completo, o rendimento-hora de brancos é de R$ 35,30, contra R$ 25,70 de pretos ou pardos, uma disparidade de 37,6%. A média salarial do homem branco é de R$ 2.507, da mulher branca, R$ 1.810; do homem negro, R$ 1.458; e da mulher negra, apenas R$ 1.071. Além disso, negros enfrentam maiores obstáculos na progressão de carreira, recebem salários desiguais e são os mais vulneráveis ao assédio moral, conforme aponta o Ministério Público do Trabalho (MPT).
 
“Quando se ataca a tal dita cultura woke, o que se está atacando é o direito da maioria da população brasileira de se ver nas histórias com dignidade. O que se ataca é o nosso direito de contar nossas próprias histórias, de estarmos nas telas e por trás das câmeras, de sermos protagonistas das narrativas que ajudamos a construir com nosso suor, nossa arte e nossa resistência. Além disso, é uma visão muito estreita do que pode ser um mercado audiovisual num país de maioria negra - basta ver o que já ocorre com o protagonismo nas telenovelas brasileiras. Precisamos ter protagonismo também econômico nessa dinâmica que já lucra conosco”, completa Tatiana. 
 
A APAN reforça ainda que o papel do audiovisual é entreter, formar pensamento crítico, refletir a sociedade e apontar caminhos possíveis para um futuro mais justo. “O cinema brasileiro é historicamente identitário porque é majoritariamente branco, de classe média, masculino e com uma mirada a partir do sudeste. O Brasil é muito maior que isso. Negar nossa pluralidade racial e territorial, por exemplo, é um gesto violento porque desconsidera esse país de dimensões continentais e que é o mais negro fora do continente africano.” Afirma a presidente.
 
Não é possível falar em liberdade ou meritocracia sem encarar todos esses cenários. Para que seja possível construir uma democracia real, deve-se fazer com que as imagens que iluminam as nossas telas exibem, encarem de frente a luta contra estereótipos e invisibilidade de pessoas minoritárias, e afronte sujeitos que reforçam estruturas coloniais. O audiovisual é uma ferramenta capaz de trazer grande transformação, justamente por isso, torna-se alvo de ataques quando subverte narrativas opressoras.
 
Em um cenário global de crescente polarização, a entidade defende que o Brasil siga firme em seus compromissos com a diversidade, a representatividade e a democracia, e rechaça qualquer tentativa de retrocesso — vindo de onde vier.
 
 
Sobre a Associação de Profissionais do Audiovisual Negro

A Associação de Profissionais do Audiovisual Negro (APAN) é uma organização brasileira que atua no fortalecimento de profissionais negros no setor audiovisual. Fundada em 2016, a entidade promove formações, laboratórios, festivais, redes de apoio e ações de incidência política com foco na equidade racial, democratização do acesso aos meios de produção cultural e valorização das narrativas negras. A APAN é hoje uma das principais referências em audiovisual negro no Brasil e na América Latina.

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