Se alguém folhear Bíblias de diferentes denominações cristãs, pode notar que nem todas contêm o mesmo número de livros. Enquanto as Bíblias protestantes têm 66 livros, as católicas chegam a 73 e as ortodoxas podem conter até 81. Mas o que justifica essa diferença? A resposta está nos chamados Apócrifos Bíblicos — textos que, embora relevantes historicamente e espiritualmente, tiveram sua autenticidade questionada por parte das Igrejas cristãs ao longo dos séculos.
O que são os Apócrifos?
A palavra "apócrifo", do grego apokryphos, significa "oculto" ou "escondido". Esses textos são obras que não estavam incluídas na Bíblia hebraica original, mas que foram preservadas na tradução grega conhecida como Septuaginta. Essa tradução surgiu entre os séculos III e II a.C., quando o faraó egípcio Ptolomeu II Filadelfo solicitou que estudiosos judeus traduzissem os textos sagrados para o grego, para sua famosa biblioteca em Alexandria.
Junto à Bíblia hebraica, também foram traduzidos diversos outros escritos da tradição judaica. Esses textos — escritos, em grande parte, no período entre o Antigo e o Novo Testamento — abordavam temas como fé, providência divina e resistência cultural durante épocas de forte influência grega e romana sobre o povo judeu.
Um Cânon em Construção
Durante os primeiros séculos do cristianismo, não havia um consenso sobre quais livros deveriam ser considerados parte do cânon bíblico. A Igreja Primitiva usava amplamente a Septuaginta, incluindo os apócrifos, mas sempre existiram dúvidas sobre sua autoridade.
Foi apenas em 397 d.C., no Concílio de Cartago, que alguns desses livros foram oficialmente reconhecidos pela Igreja Católica como “Deuterocanônicos”, ou seja, parte de um “segundo cânone” do Antigo Testamento. Já a Igreja Ortodoxa manteve praticamente todos os textos da Septuaginta como canônicos. Por outro lado, a Reforma Protestante, iniciada em 1517, rejeitou esses livros por não considerá-los divinamente inspirados.
Para um livro ser aceito como parte do Novo Testamento, ele precisava atender a três critérios: ter autoria apostólica (ou de alguém próximo a um apóstolo), estar alinhado com a doutrina cristã reconhecida e já ser amplamente utilizado pelas comunidades cristãs. Apenas 27 livros cumpriram esses requisitos — lista que foi formalizada por Atanásio de Alexandria em sua Carta Pascal de 367 d.C.
Lutero, a Bíblia do Rei Jaime e o Lugar dos Apócrifos
A Bíblia de Lutero, traduzida para o alemão em 1534, foi a primeira a apresentar os apócrifos em uma seção separada entre o Antigo e o Novo Testamento. A famosa Versão do Rei Jaime (King James Version), de 1611, também os incluiu, e essa estrutura com 80 livros se manteve por mais de dois séculos.
Foi apenas em 1885 que os apócrifos foram oficialmente removidos da Bíblia do Rei Jaime. A principal razão? Custos de impressão. Sociedades Bíblicas na América do Norte e no Reino Unido pediram edições sem os apócrifos, para tornar a produção mais barata e acessível.
Ainda hoje, algumas edições da Revised Standard Version e da New Revised Standard Version continuam incluindo os apócrifos, especialmente para estudos acadêmicos ou litúrgicos. Nos Estados Unidos, a American Bible Society não impõe restrições sobre a presença desses textos.
Mais do que Textos Religiosos
Independentemente de sua inclusão nas Bíblias modernas, os apócrifos tiveram — e continuam tendo — grande influência cultural. Eles inspiraram obras de arte, teatro, literatura e pintura, especialmente durante o Renascimento. Com temas que vão da coragem e virtude à fé em tempos difíceis, esses livros deixaram um legado espiritual e ético duradouro.
Portanto, a diferença entre as Bíblias não é resultado de manipulação, mas sim de um processo histórico, teológico e linguístico que reflete os caminhos distintos trilhados pelas tradições cristãs ao longo dos séculos.
Foto: Shutterstock
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