Em 1886, uma descoberta arqueológica na antiga cidade egípcia de Akhmim (Heliópolis) trouxe à luz um manuscrito contendo quatro textos, sendo um deles intitulado "O Evangelho Segundo Pedro". Essa descoberta gerou um grande interesse, pois, apesar de existirem referências indiretas na antiguidade a um texto com esse nome, esta foi a primeira vez que o texto em si foi encontrado. O Evangelho de Pedro oferece uma perspectiva alternativa aos Evangelhos canônicos sobre o julgamento, execução e ressurreição de Jesus, levantando importantes questões sobre a história do cristianismo primitivo e a formação do cânon bíblico.
Conteúdo e Divergências com os Evangelhos Canônicos
O manuscrito encontrado está incompleto, apresentando apenas a parte final do evangelho, que descreve o julgamento, a execução e a ressurreição de Jesus, similar aos últimos capítulos dos Evangelhos canônicos. Embora compartilhe muitos elementos com esses textos, o Evangelho de Pedro apresenta detalhes distintivos:
Inscrição na Cruz: Em vez de "Rei dos Judeus", a inscrição na cruz é "Rei de Israel".
Últimas Palavras de Jesus: As últimas palavras de Jesus na cruz não são "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?" ou "Senhor, em tuas mãos entrego o meu espírito", mas sim "Meu poder, meu poder, deixaste-me". Essa frase, em particular, levanta discussões sobre o docetismo, uma doutrina cristã antiga.
Responsabilidade pelo Julgamento: Uma das diferenças mais marcantes é que o julgamento de Jesus não é presidido por Pilatos, mas por Herodes Antipas, governador da Galileia e uma autoridade judaica. O Evangelho de Pedro isenta Pilatos e Roma de qualquer responsabilidade pela execução de Jesus, atribuindo toda a culpa aos judeus coletivamente.
Descrição da Ressurreição: O texto descreve a ressurreição de Jesus de forma espetacular e pública. Dois homens descem do céu, entram no sepulcro e de lá tiram Jesus, que emerge maior ou mais alto do que eles. A cruz também é retirada do sepulcro e, ao ser questionada por uma voz do céu se anunciou o evangelho aos mortos, a cruz responde "sim".
A Relevância Histórica e o Docetismo
Vários autores antigos, como Eusébio de Cesareia, mencionam um "Evangelho Segundo Pedro". Eusébio relata uma história sobre Serapião, bispo de Antioquia no século II, que inicialmente permitiu a leitura desse evangelho em uma comunidade cristã na Síria. No entanto, ao descobrir que o texto estava associado a um grupo considerado herético, os docetas, Serapião decidiu lê-lo. Ele concluiu que, embora o evangelho estivesse em grande parte conforme a doutrina ortodoxa, continha pontos que iam contra ela, e que Pedro nunca o havia escrito.
O docetismo é uma doutrina que defendia que Jesus era 100% divino e 0% humano, ou que sua humanidade era apenas aparente e ilusória. Outra vertente do docetismo sugeria que Jesus era uma pessoa humana e Cristo (o Logos) uma pessoa divina, que teria possuído Jesus no batismo e o abandonado antes de sua execução, de modo que apenas o homem morreria.
Algumas passagens do Evangelho de Pedro podem ser interpretadas como docéticas:
A descrição de Jesus não sentindo dor enquanto era crucificado.
Suas últimas palavras "Meu poder, meu poder, deixaste-me", que poderiam ser uma referência ao Cristo abandonando Jesus.
O fato de Jesus ser "levado para cima" após a morte, enquanto seu corpo permanece na cruz.
No entanto, o texto é ambíguo, e essas passagens podem ser eufemismos ou interpretações figuradas. Há, inclusive, uma passagem que parece contradizer o docetismo, ao afirmar que um terremoto ocorreu quando o corpo morto de Jesus foi colocado no chão, valorizando a materialidade do corpo.
Autoria, Datação e o Cânon Bíblico
Academicamente, ninguém acredita que o Evangelho de Pedro tenha sido escrito pelo apóstolo Pedro. É considerado um texto pseudoepigráfico, ou seja, falsamente atribuído a uma figura importante para conferir-lhe autoridade. Características internas do texto sugerem que ele data do século II d.C., e não do período apostólico.
Alguns dos indícios que apontam para uma autoria posterior e não petrina incluem:
A forma como o texto se refere aos judeus, usando pronomes de terceira pessoa ("eles", "a lei deles"), o que seria incomum para um autor judeu como Pedro.
A total isenção de Pilatos e Roma da responsabilidade pela morte de Jesus, culpabilizando integralmente os judeus, um traço comum em textos cristãos mais tardios que buscavam se distanciar da perseguição romana.
A palavra "judeus" é frequentemente usada como sinônimo de "inimigos de Jesus", o que reflete um período em que a distinção identitária entre judeus e cristãos já estava mais consolidada.
A descoberta do Evangelho de Pedro em Akhmim é um testemunho valioso da pluralidade de textos que circulavam entre as comunidades cristãs antigas. Embora não esteja presente nas bíblias atuais, ele nos informa sobre a diversidade de entendimentos e opiniões sobre Jesus, a relação entre judeus e cristãos, e a responsabilidade pelos eventos do primeiro século. A história de Serapião demonstra que o processo de formação do cânon bíblico não foi imediato, mas um amadurecimento gradual com discussões e análises sobre a ortodoxia e autoria dos textos.
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