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Fotógrafa pernambucana vence Prêmio Pierre Verger com série que honra os Pretos Velhos da Jurema Sagrada


Artista celebra seu segundo prêmio nacional com 19 imagens da série “Canjerê dos Pretos Velhos na Jurema Sagrada”, produzidas ao longo de três anos de convivência contínua no Ilê Axé Oxalá Talabi, um terreiro afro-indígena de Pernambuco

Da periferia do Recife para o Brasil inteiro, a pernambucana Wenny Mirielle Batista Misael, conhecida artisticamente como Uenni, segue rompendo barreiras. Mulher negra, sem formação acadêmica formal, neta e filha de trabalhadoras domésticas - e a primeira da família a quebrar esse ciclo por meio da fotografia - ela conquistou, no dia 27 de novembro, o Prêmio Nacional de Fotografia Pierre Verger, um dos mais prestigiados do país, com a série “Canjerê dos Pretos Velhos na Jurema Sagrada”. O reconhecimento, anunciado no fim do Mês da Consciência Negra, consolida seu nome entre os principais expoentes da fotografia contemporânea brasileira ligada às ancestralidades afro-indígenas.

Premiada na categoria Ancestralidades e Representações, a série reúne 19 imagens produzidas entre 2022 e 2025, fruto de três anos de convivência e registro no Terreiro Ilê Axé Oxalá Talabi, comunidade da qual Uenni faz parte, localizado no território afro-indígena de Paratibe, em Paulista (PE). Dez dessas fotografias já haviam conquistado o primeiro lugar na categoria série do Prêmio Mário de Andrade de Fotografias Etnográficas, tornando Uenni a primeira mulher negra do Brasil a vencer a premiação nessa categoria. As outras nove imagens, inéditas e realizadas entre 2022, 2023 e 2025, ampliam o retrato que ela vem construindo a partir de uma relação íntima e contínua com esse espaço sagrado.

As imagens carregam a força do canjerê dos Pretos Velhos, uma das expressões mais profundas da Jurema Sagrada, tradição historicamente marcada pela intolerância religiosa. Ao registrar esses rituais, Uenni constrói um arquivo visual que fortalece o reconhecimento e a valorização das práticas afro-indígenas, em um momento em que os debates sobre racismo religioso e a preservação de saberes ancestrais ganham centralidade no país.

“A série não foi pensada como projeto, nasceu com o tempo. A fotografia me deu uma forma de mostrar que a gente também merece respeito, que nossa cultura e nossa religião não têm nada a ver com o demônio. É muito interessante quando pessoas se sentem impactadas positivamente pelo trabalho, até pessoas evangélicas já elogiaram. São casos isolados, mas mostram que a imagem pode atravessar barreiras e abrir espaço para a compreensão de quem normalmente não tem contato com esses espaços”, afirma Uenni.

Memória familiar como ponto de partida

A relação de Uenni com a fotografia nasce da memória afetiva construída com a avó, uma mulher que, mesmo com poucos recursos, sempre registrou a história da família. Com o tempo, Uenni percebeu que parte desses registros estava se perdendo, fosse pela dificuldade da avó em migrar para as tecnologias digitais, fosse pela fragilidade dos DVDs onde muitas ficaram guardadas. O desejo de preservar a memória familiar, especialmente diante da falta de imagens de antepassados, fez a fotografia se tornar para ela uma forma de continuidade e resgate e reconstrução da própria história.

O impulso para fotografar terreiros surgiu quando Uenni encontrou fotos antigas feitas por sua avó em um terreiro de Jurema, na década de 1990. A descoberta reacendeu uma memória afetiva que atravessa gerações e revelou, com clareza, o caminho que ela já vinha trilhando ao retratar a cultura popular. A partir desse reencontro, Uenni compreendeu que sua trajetória artística estava ali: na documentação das tradições, das pessoas e do tempo dentro desses espaços sagrados. Começou fotografando de forma profissional, mas logo percebeu que seu trabalho exigia outra lógica, baseada no acompanhamento verdadeiro das transformações, das histórias e das relações dentro do terreiro.

Essa presença contínua define sua produção atual, um acervo que cresce junto com o próprio terreiro, acompanhando processos, ciclos e trajetórias de vida. Para ela, fotografar terreiros é preservar a memória, honrar sua ancestralidade e construir um arquivo vivo do tempo. “Este trabalho que está ganhando o segundo prêmio foi feito com calma. Ele segue a história de um terreiro, de um culto, de uma tradição, sem pressa. É assim que gosto de trabalhar, construindo obras mais sólidas, sem determinar um fim. Desde 2022, percebo o crescimento do espaço e das pessoas, com crianças que eram pequenas e hoje são pré-adolescentes. Isso é o que considero mais interessante no meu trabalho”, afirma.

Reconhecimento e circulação nacional

Com o prêmio, Uenni passa a integrar a Exposição Coletiva e o Catálogo da 10ª edição do Prêmio Nacional de Fotografia Pierre Verger, consolidando seu nome no panorama da fotografia etnográfica e contemporânea brasileira. No último ano, a fotógrafa também ampliou a circulação de seu trabalho: foi convidada a participar da Exposição Coletiva do Prêmio Mário de Andrade, no Rio de Janeiro, a expor sua obra em uma mostra coletiva no Brejo da Madre de Deus, no Agreste pernambucano, e a ministrar uma formação audiovisual em terras indígenas no Acre. Lá, conviveu e trocou saberes com povos originários, uma experiência que atravessa e fortalece sua produção e sua pesquisa de caráter antropológico.

Terreiro Axé Talabi - O Ilé Àse Òrìsànlá Tàlábí (Terreiro Axé Talabi) é uma comunidade tradicional localizado no território afro-indígena de Paratibe, em Paulista (PE), em atividade há mais de trinta anos, preservando práticas do candomblé nagô e do culto à Jurema Sagrada do Rei Salomão. Fundado por Mãe Dada de Oxalá e Obá Dodê, suas atividades públicas começaram em 1991, suas raízes são ainda mais antigas, com fundamentos iniciados pela família dos fundadores. Além do calendário religioso, o Terreiro realiza projetos culturais, educacionais e sociais, fortalecendo a ancestralidade afro-indígena e o vínculo com a comunidade.

Reconhecido por sua importância cultural e espiritual, o Terreiro foi declarado Patrimônio Vivo de Pernambuco (2023), Patrimônio Histórico e Cultural de Origem Africana e Afro-indígena Brasileira do Município de Paulista (2021) e Patrimônio Cultural dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana - IPHAN (2015). Também recebeu o Prêmio Ayrton de Almeida Carvalho de Preservação do Patrimônio Cultural - SECULT/PE (2018) e, em 2015, também foi reconhecido como Ponto de Memória pelo Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), dando origem ao Ecomuseu Mímó Igbó e consolidando o Terreiro como um espaço de memória social, educação patrimonial e preservação das tradições afro-indígenas.


Foto: rebeca Andrade

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